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A orientação Espiritual
(Trechos de um artigo do P. Ulpiano Vásquez Moro, SJ
O orientador espiritual é alguém, homem ou mulher que tem o carisma de ajudar a discernir a experiência
espiritual de outras pessoas. Dois elementos me parecem essenciais nesta definição descritiva: experiência
espiritual e discernimento.
Um processo de orientação espiritual só começa a existir realmente quando o objeto ou o assunto do
diálogo entre a pessoa que deseja a orientação espiritual e aquele que ajuda a encontra-la está centrado na
experiência espiritual da pessoa que procura a orientação. O que aqui entendo por “espiritual” é a
experiência pessoal de Deus. Mais concretamente ainda: dizer que o centro da orientação espiritual deve ser
a experiência pessoal de Deus daquele ou daquela que procura orientação, significa que esta pessoa de
alguma maneira está tomando consciência da ação imediata de Deus em sua vida; que é alguém que
experimenta que é sujeito e objeto de uma experiência que, ativa e passivamente, pode ser denominada
experiência de Deus e que, por isso mesmo, é irredutível a qualquer outro tipo de experiência subjetiva ou
intersubjetiva que essa pessoa possa ter vivenciado.
Sou absolutamente cético quanto à possibilidade da existência de uma orientação espiritual quando não
existe oração e quando digo oração não estou me referindo à oração formal ou formalizada num tempo e
num espaço, num método etc. É bem possível que no início não exista esse tipo de oração. Assim como é
também possível que exista uma disciplina de oração, mas que a pessoa não reze realmente (pense-se, por
exemplo, na oração que em certos lugares se faz como uma obrigação imposta e não assumida
pessoalmente).
A orientação espiritual só deslancha realmente quando alguém sente aquilo que antes denominava
experiência pessoal e imediata de Deus e quando essa experiência desassossega a pessoa. Não creio que o
que estou dizendo signifique que tal pessoa tenha o que, vulgarmente, é etiquetado como experiência
“mística”; nem sequer que seja necessário o fato da pessoa ter consciência clara da imediatez da presença de
Deus. Basta, parece-me, que a pessoa sinta que encontrou “ALGUÉM”. Na linguagem dos Exercícios
Espirituais Inacianos caberia dizer que a pessoa tomou consciência de estar sendo “afetada” por Deus. Esse
termo indica já, por si mesmo, que a experiência de Deus atinge a pessoa nesse âmago fundamental que nós
denominamos afetividade e que a partir dele suscita e põe em movimento afetos, imagens, ideias de natureza
forçosamente contrastadas e catalisadas em volta desses dois polos extremos que Inácio chama “consolação”
ou “desolação”. A pessoa assim afetada sente a necessidade de se mexer, de mover-se (é por isso que Inácio
chama “moções” a esse tipo de sentimento que ele adjetiva “internos” para indicar que não são
necessariamente ou puramente sentimentais). A pessoa sente assim a necessidade de procurar um caminho
para se ORIENTAR nessa nova situação, nesse novo chão ou solo onde se sente “com-solada” ou “des-solada”.
Sem essa procura suscitada interiormente pela experiência de Deus a busca de orientação espiritual me
parece estar fadada ao fracasso, Dito com outras palavras: a procura de orientação espiritual só tem sentido
como um meio para atingir algo ou ALGUÉM que não começa nem acaba na orientação espiritual.
É bem possível, pelo menos assim me parece, que uma das maiores dificuldades que a orientação
espiritual enfrenta hoje, pois atinge a sua própria condição de possibilidade, seja uma espécie difusa de
descrença a respeito daquilo que acima chamava de “experiência imediata de Deus”. O jargão sobre as
chamadas mediações acaba gerando um modo de pensar pseudo-dialético onde a presença de Deus e a sua
ação correm o risco de ficarem esvaziados ou diluídas nos meios ou mediações que acabam tornando “Deus”
algo mais parecido com uma ideia, um fim inspirador ou um imperativo moral do que com ALGUÉM que,
mesmo na mediação ou no meio, nos atinge e é atingido de maneira imediata, pois nos atinge ou se deixa
atingir através de mediações que são postas por Ele mesmo. A “economia” da oração como toda a realidade
cristã e, em certa maneira, toda realidade criada, é sacramental”.
Dizia que esta dificuldade (tipicamente moderna e que, nesse sentido, pode atingir mais os jovens e de
maneira especial os mais engajados ou “ilustrados”, mas que sob a formulação moderna se corresponde com
todas as outras formas de neutralizar Deus na ideia, no conceito ou na norma), esta dificuldade, digo, mina a
própria condição de possibilidade da orientação espiritual. O motivo é simples: onde se infiltra a suspeita
sobre a experiência imediata de Deus, ou onde ela é apenas pressuposta como uma espécie de fundo
indeterminado e inacessível, nunca articulado na experiência e na linguagem, a oração mesma acaba se
tornando impossível.
FUNÇÃO NEGATIVA: O que não é o Orientador Espiritual?
Na definição descritiva avançada no início dizia que o Orientador Espiritual é alguém que possui o carisma de
ajudar os outros a discernir a experiência espiritual. Tentarei agora tirar algumas consequências que dizem
respeito ao papel que o Orientador desempenha na relação de orientação. Começarei indicando o que creio
que o Orientador não é:
1. O Orientador Espiritual não é Mestre ou “Guru”: Não creio que a relação mestre-discípulo, a
relação pedagógica, seja a que melhor define a relação de orientação no cristianismo. Pode
acontecer que a mesma pessoa desempenhe as duas funções, a de mestre e a de orientador, mas
não creio que as duas sejam compatíveis ao mesmo tempo e pela mesma pessoa. Com outras
palavras: a orientação espiritual, enquanto tal, não é uma relação pedagógica. Mesmo no caso em
que seja uma “mistagogia”.
2. O Orientador Espiritual não é Superior: Mais arriscada ainda me parece a possibilidade de
justapor a função de Orientador Espiritual e a de Superior. Os motivos neste caso são mais óbvios
e, mesmo na hipótese (que os antigos tratados sobre Direção Espiritual debatiam) de que o
orientando deva ou não prestar obediência de formas diferentes nos dois casos e que, por isso,
qualquer confusão de níveis só pode gerar mais confusão ainda.
3. O Orientador Espiritual não é Confessor: também não creio que a melhor maneira de definir o rol
de Orientador seja a de Confessor, mesmo no caso, que foi o mais comum, de que o Orientador
seja um Presbítero. As duas funções, também neste caso, podem coincidir na mesma pessoa, mas
não ao mesmo tempo e que, em qualquer hipótese, a confissão não deve ser a finalidade última
da Orientação Espiritual.
4. O Orientador Espiritual não é Moralista ou Conselheiro: o que digo sobre o confessor me aprece
ainda mais válido em relação ao “moralista”. A relação de orientação perde o sentido quando se
transforma em aconselhamento moral, ou simplesmente em aconselhamento. Mesmo nos casos
em que os problemas morais sejam subjetiva e objetivamente graves.
5. O Orientador Espiritual não é terapeuta: Também não creio que, no mesmo tempo e pela mesma
pessoa, seja possível misturar qualquer tipo de terapia psicológica ou analítica com a orientação
espiritual.
O motivo destas incompatibilidades se fundamenta, a meu ver, no fato de que nesses diversos tipos de
relação (mestre, superior, confessor, conselheiro, terapeuta ou médico) a discrição, a modéstia e o respeito,
mas também a fraternidade, a transparência e o testemunho que no cristianismo devem caracterizar a
orientação espiritual, ficariam de algum modo comprometidos.
Creio (e sei que a afirmação é discutível) que a orientação espiritual não deve estar ligada, enquanto tal, a
nenhuma forma de ministério hierárquico na Igreja ou na Vida Religiosa. Assim como também não me parece
que ela, enquanto tal, deva revestir-se de qualquer espécie de competência profissional ou acadêmica. Isso
não quer dizer evidentemente que a Orientação Espiritual esteja à margem, ou não precise, de nenhuma
forma de reconhecimento eclesial. Como também não quer dizer que o Orientador deva medir o seu grau ou
o seu nível de competência espiritual pelo tamanho de sua incompetência ou ignorância em tudo o mais que
não é ou não parece “espiritual”. Todos sabem que, na alternativa entre um confessor piedoso mais não
muito “letrado”, em “letrado” mas não muito piedoso, Santa Tereza preferia o “letrado” ao piedoso.
FUNÇÃO POSITIVA: Que é o Orientador Espiritual?
O Orientador Espiritual é um Teógrafo e um Mistagogo: a orientação vem dada de maneira imanente pela
trajetória que a relação imediata entre Deus e a outra pessoa vai descrevendo por si mesma. Nesse sentido a
orientação espiritual deve ser sempre, mas sobretudo no início do processo algo indireto ou reflexo. A função
do orientador não me aprece que seja tanto a de orientar diretamente quanto a de localizar ou situar a
trajetória da relação com Deus num espaço e num tempo. O orientador, aí, é como uma bússola: ela não
inventa o Norte, mas o localiza.
Da mesa maneira o espiritual orienta na medida em que ajuda a situar a trajetória e seu sentido
imanente, não a inventá-la. A percepção dessa trajetória, por sua vez só pode ser realizada através das
marcas que dela transparecerem na narração que o próprio orientando faz da sua experiência espiritual. Elas
possibilitam o mapeamento ou a textualização (teografia) da situação em função do que antes denominei
paradigma da revelação de Deus que pode ser lido no texto da Escritura.